Dona Zefa, a criação do mundo através de imagens: do verbo faz-se a carne | de Zeca Ligiéro
“Nas história antiga, que eu conheci, dos meus bisavós… e os antigos,
né?! Porque de livro não me interessa. Pelo menos, eu sei, eu vou contar
as histórias do que se contava no passado.”
O presente artigo investiga as narrativas da artista, contadora de caso e
benzedeira dona Zefa, moradora de Araçuaí, Vale do Jequitinhonha.
Muitas de suas histórias são baseadas na Bíblia, mas passam por um
processo de reinvenção, onde a narradora acrescenta elementos não
originários das escrituras sagradas. As forças da natureza aparecem
eloquentemente, tanto em seu trabalho escultórico como em sua narrativa,
o que nos convence de que suas histórias se referem diretamente ao
universo afro-ameríndio. Exclusivamente, por meio da sua performance, a
narradora não só encarna a história como reinventa seus significados
originais, dando-lhes novos contornos e novos contextos. Seu texto
existe apenas como parte da sua performance oral, portanto ele só existe
enquanto toma forma na voz e no corpo da performer, que literalmente o
corporifica pela comunicação com o ouvinte/espectador. O artigo,
portanto examinará a narrativa não apenas como texto literário, mas como
elemento propriciador da performance oral, onde a história narrada não
só exemplifica a relação do sujeito com o tema, mas o posiciona como
criador de imagens vivas. Zefa reúne em seu ofício as diversas
atividades ocupadas tradicionalmente pela pessoa de teatro: o dramaturgo
ou adaptador do texto, o diretor de cena, o ator e espectador
privilegiado da própria história já que ela faz pequenos comentários que
poderíamos classificar como próximos à proposta do teatro Épico de
Bertolt Brecht, coisa que, naturalmente, nunca ouviu falar. Seu cenário
de fundo é composto de duas cortinas com estamparia floral que dão
acesso a outros cômodos da casa e duas paredes totalmente revestidas com
uma coleção de fotos de família, de colecionadores de seus trabalhos e
amigos intercalados com toda a sorte de imagens de santos, cartões
postais, recortes de jornal etc. Isto é sua sala de visita e oficina
repletas de suas esculturas recém-terminadas ou ainda em processo,
feitas em troncos de madeiras. A maioria delas é feita na forma de
colunas com caras duras, anjos retorcidos junto, peregrinos e beatos das
memórias longínquas das mesmas terras onde pisaram Antonio Conselheiro e
Lampião e de onde ela tem as suas raízes familiares e onde viveu a sua
juventude.
Mas, ao contrário do griôs conhecidos, Zefa não interpreta os
personagens de suas histórias, ela os apresenta. Ela reproduz seus
diálogos curtos com uma comedida pontuação, uma prosódia peculiar,
emprestando-lhes sempre um tom coloquial como o da conversa de vizinhos
na varanda de suas casas nas noites de lua cheia, assim ela trata os
seus espectadores, não importa se autoridade ou criança que se chega.
Seu teatro aproxima-se do universo da performance, pois ela conta com a
imaginação do espectador para completar a história, embora o sentido da
mesma ela não deixe escapar. Em nenhum momento cria a mimesis ou a
linguagem corporal do personagem, não há em nenhum momento preocupação
em recriar alguma atmosfera “teatral”, imitando trejeitos ou forma de
falar de algum personagem. Os fatos são mais importantes que as reações
físicas dos personagens, o que eles fazem e falam é mais importante do
que eles sentem. Ela talha a sua narrativa num tom firme e extremamente
convincente. São histórias do sertão, das terras secas e quentes do
norte da Bahia, de Sergipe e Alagoas onde perambulou quando jovem, e as
terras misteriosas das Gerais, os serros frios e desertos, serpenteados
pelo rio Jequitinhonha.
Além de contadora de histórias, dona Zefa é uma ativa escultora em
madeira, profissão que abraçou depois de fugir da seca do nordeste, onde
trabalhou como feirante, vendedora ambulante, construtora de malas e
carpinteira de camas “feitas a prego” para finalmente fixar residência
no Vale do Jequitinhonha, uma região repleta de histórias e lendas. Ali
também encontrou seu oficio mais nobre: a arte – ceramista por três
anos, quando adoece e descobre a escultura em madeira que a projetou
nacionalmente. Zefa Alves dos Reis é originária da região fronteiriça
entre os estados de Alagoas, Sergipe e Bahia. Quando seu irmão mais
velho, em 1958, foi construir Brasília em busca de uma situação melhor
para família, viu-se em completa miséria, pois o irmão nunca mais deu
notícias e nem retornou ao lar, ela então, como milhares de nordestinos,
migrou para o sul ao lado da cunhada, que também não tinha uma
profissão definida, em busca de uma vida melhor. O mundo encantado das
lendas que ouviu, a Bíblia aprendida dentro de uma tradição oral e a
própria história de vida se mesclam em seu trabalho escultórico bem como
em suas narrativas épicas. Ela é contadora de caso desde criança como
ela própria aponta em uma de suas histórias:
Foi lá na Serra dos Aimorés, (…) também tinha essa família que era
de imigrante que veio de Portugal, aí os pais moraram lá numa sede muito
boa, eram muito ricos, aí eles morrero e deixou duas filha. Duas foi
vizinha nossa, uma morava, a casa dela ficava na frente da casa que nós
morava e a outra morava mais longe, não sei cumé o nome dela, sei que eu
fiquei na casa dela muitos dias com ela, porque naquela época não havia
televisão e eu contava muita história de folclore né, porque na fazenda
de meu avô, naquele tempo todo mundo sabia história, mas quem tinha
memória boa pra guardá história, pai dizia assim “Zefa vai divertir o
povo” contando história né, aquele multidão de gente sentava na calçada e
eu sentava o pau pra contá história, e Preta, essa menina de Portugal,
chamavam ela Preta. Mas era branca de olho azul, a peça mais bonita,
parecia uma grande modelo né, era bonita demais. Ela casou com um
tenente, o tenente era mineiro, mas naquele tempo que a tuberculose era
igual a AIDS agora, que não encontra remédio, então a tuberculose tava
matando gente demais, então o moço um dia começou a sentir uma dor,
assim que ele casou, ele começou a sentir uma dor, por dentro nos
intestino. Aí ela levou ele pra Belo Horizonte, aí ele passou no raio X,
quando passou no raio X aí era tuberculose, tinha começado a mancha da
tuberculose. Interessante, que o homem tava quase de lua de mel né, aí o
médico disse assim “Aparta a dormida com sua esposa porque você ta
contaminado, tuberculoso”, aí ela disse que veio, esse homem veio
desesperado, aí passou remédio, aí retorna lá de novo em Belo Horizonte,
aí ele foi e chegou, passou um dia, no outro dia, que ele disse assim
“Ô Preta vai pegar uma água pra mim”, aí ela foi. Quando ela foi pegar a
água, a casa era muito grande, quando ela foi pegar a água lá na
cozinha, ele detonou o revólver perto do ouvido e morreu, aí ele morreu e
ela ficou desesperada também, bom, quando nós chegamo lá tinha quinze
dia que o marido dela tinha se matado e ela tava impressionada né. Aí de
parente dela…. tinha uns amigo né, que os pai deixou, os parente são os
amigo como eu tenho aqui né, é os amigo, só tinha uma irmã, aí eu
contando muita história e o amigo disse assim, “ô Preta vamo divertir na
casa de Sô Jão”, Zefa tá lá contando história e tem muita gente
assistindo. Aí ela foi, assistiu, se divertiu muito, aí disse “Seu
João”, meu pai se chamava João Aldo né, “Seu João Aldo, o senhor pode me
dá a Zefa pra ela passar uns dia comigo, pra ela me divertir, contar
história”. Porque ela perdeu o marido, tava pra perder o juízo, aí pai
disse assim “Ah, a menina ta fazendo nada não, ela pode passa até meses
com você, é aqui vizinho…”
Interessante como ela própria percebe o poder performativo de suas
histórias, capaz de, como afirma Schechner, “transportar e transformar o
espectador”. (SCHECHNER: 1985) O contato com as narrativas orais
permite a viúva da história narrada transcender a sua própria dor
individual ao mergulhar num universo místico criado pela contadora. Sua
história, mesmo sem intenção, exerce um alto poder terapêutico.
Atualmente com 84 anos, Zefa escreve a própia história de mulher e
cidadã em Araçuaí, uma comunidade dominada pelo imaginário de vaqueiros e
mineiros, tradições de lavadeiras cantoras e com muitos artistas e
artesões, onde se destacam também suas conhecidas ceramistas: dona Lira,
famosa por suas máscaras com motivos afro-brasileiros e dona Isabel,
por suas bonecas grandes de cerâmica vestidas de noivas coloridas com os
diferentes barros da região. Dona Zefa, não atribui a si própria a
versão das histórias que conta, mas ao que foi aprendido com os mais
velhos. Em suas histórias, se destaca a sua relação com a Mãe Terra,
algo apreendido ao longo de sua existência e que considera primordial
passar para os outros, como narra:
O moço da imprensa falou comigo “Zefa, é engraçado que eu tenho
feito entrevista no mundo inteiro. Eu nunca soube da pessoa conversar
com Deus considerando a Mãe Terra como mesa da comunhão. É a coisa mais
bonita que eu achei na minha vida e eu vô passar pruns amigo meu que é
estrangeiro.” Porque é assim: antigamente… são confissão de antigamente,
dos antigo. Então antigamente a cidade, pra você conhecer o padre era
muito difícil, então tinha a santa confissão é… que os padre andava
celebrando santa missão para confessar os povo, para confessar os povo,
que era muito bruto e inocente, que morava nas montanha, no centro da
roça. Então… você tem uma pessoa doente, que ele tá pra morrer. E como é
que ele confessa se num tem padre? Eu moro num lugar distante, e aí? A
cidade fica distante 5 ou 6 légua, e meu parente na cama da morte, e
como é que ele confessa? Então antigamente a cidade era muito distante
uma das outra. O antigo ensinou… essa oração da confissão ela já vem de
muito mais de mil anos… muito mais! Muito mais! Isso vem dos antigo.
Então diz assim. A pessoa vai conversar com Deus. Foi a confissão que o
Cabeça de Ferro fez. Aqui teve um.. no mundo… teve um valentão igual a
Lampião, igual a cangaceiro. Vivia matando os outro pra roubar. Só que
ele não tinha companheiro, ele era sozinho. Então, chamava… o povo tinha
tanto medo dele que chamava “Cabeça de Ferro”, porque não tinha
ninguém. Era… o destino dele era o de matar, né? De dia… de noite… de
dia ele tava no mato escondido e de noite ele saía escondido pra matar.
Só que ele matava porque aquilo parece que era uma fraqueza da cabeça
dele, ele era um matador de fama, né? Conta há muitos anos atrás, né?
Milhares de anos… o Cabeça de Ferro era conhecido no mundo inteiro, né?
Um caçador tava caçando e o Cabeça de Ferro tava escondido no mato que
era pra noite… Ele invadir as casas, né? Aí quando o caçador viu o
Cabeça de Ferro, ele desmaiou e caiu com a espingarda na mão. Aí o
Cabeça de Ferro falou “Já viu um homem cair sem eu matar?” Mas mesmo
assim o homem tava morto. Aí ele disse assim “eu não sou gente não, se o
homem só de me ver, ele morre, eu não quero ter mais vida”. Aí foi e se
ajoelhou num pedá de pau e disse assim: “Aqui me ajoeio, Senhor, nesta
mesa de finar, minha alma se alegra de ver tão rico manjar. O manjar
excelente dado pelo Senhor, que os pecado que eu tinha, agora num dia se
confessou. Eu agora vós digo, Senhor, sem saber quanto eles são,
perdoai os meus pecado, na santa mesa da comunhão.’’ Aí vai e beija… a
terra, ce reza oiando pra o céu, porque é ajueiado, né? Você se ajueia e
reza, porque tá conversando com Deus, com Jesus Cristo.
Quase sempre ela ilustra o pensamento com uma história, criando uma
espécie de parábola em que demonstra uma espécie de moral sobre o
assunto abordado. Em outra ocasião ela teoriza sobre o poder da Mãe
Terra:
Porque a Mãe Terra é a dona de nosso corpo. Ela tem todo o poder.
Ela tem a graça de Deus de criar nóis. Ela criô nóis, cria tudo que nela
existe, ela muda uma serra de um lugar pro outro, conforme uma
tempestade de chuva. Ói, eu merma visitando a Lapa de Bom Jesus, eu
merma vi o rio onde é que era… ele foi mudado… mudado, né? Bom, então a
Mãe Terra muda a serra dum lugar pro outro. Por que ela não pode mudar
nossa vida?
Dentre as inúmeras histórias colhidas, sem dúvida, a da Criação do
Mundo, por ser a mais conhecida de todos, se torna a mais interessante
por apresentar uma versão bastante inusitada, pois seus protagonistas
são apresentados de forma coloquial, demasiadamente humanos em suas
reações: Adão um tipo curioso e metido a esperto, Eva ingênua e gulosa, o
Anjo um tanto futriqueiro e Deus, onipresente, mas meio esquecido. Ela
não faz comentário sobre os personagens, percebemos seu comportamento
através de algumas reações tão diferentes da percepção clássica de
quadros estereotipados como “A tentação de Eva”, “A expulsão do paraíso”
etc. A história de Zefa começa com que o já é conhecido, Deus criando
Adão a partir de um monte de barro e deixando-o para que ele possa
descobrir, sozinho, a natureza. Em algum momento depois, ele fica
curioso para saber como está a sua criação e ele pede ao Anjo:
“- Óia, vai ver como Adão tá.” E Deus sabia tudo que ia acontecer
né. Aí o Anjo chegou lá, Adão tava acocorado por trás do pau com a mão
na cabeça. O Anjo chegou assim: “- Ó Adão, que tristeza é essa? Você tem
tudo nas suas mão, tem tudo à vontade e você tá triste assim, tem tudo
enquanto é bicho pra você se divertir.” E ele tá calado. “- É o quê,
Adão? Por que você tá triste? O que é que te faz alegrar?” E ele dizia
assim ó: “- Só tenho alegria se aparecer uma companheira.”
Em sua narrativa mítica ela trata os personagens sagrados sem nenhuma
cerimônia, como fazendo parte do universo caipira em que ela se insere,
com tranquilidade e respeito; eles são extremamente informais e falam a
linguagem do povo. Quando o Anjo dá a notícia para Deus, ele decide ir
lá falar com Adão pessoalmente:
“- Adão”, “- Tô aqui.” “- Cê tá querendo uma companheira, né, Adão?
Tão deita aí.” Aí pegou a costela mindinha dele e fez a mulher, deu
vida. Aí Deus contou a ele; aí ele perguntou assim: “- Por que o Senhor
tirou o osso menor, a costela menor da cintura?” “- Porque a mulher tem
que ser igual a você.” “- Por que não tirou da cabeça?” “- Porque a
mulher não pode dominar o homem.” “- E por que não tirou dos pés?” “-
Porque o homem não pode pisar na mulher.” Aí foi perguntando tudo.
Aqui a preocupação entre a equidade entre os gêneros surpreende, pois
tradicionalmente o papel da mulher tem sido pouco enfatizado pela visão
ortodoxa católica. Entretanto, o enunciado acima pode ser interpretado
também como uma máxima reguladora da visão do universo católico rural,
na qual o homem é quem tradicionalmente domina a mulher, portanto o
inverso nunca pode acontecer. Ele, uma vez exercendo esse domínio, nunca
deve maltratá-la. Mas de qualquer forma, a igualdade do paraíso, onde
pareciam feitos um para o outro, nivelados pela inocência, um estado de
graça foi definitivamente perdido e alcançado apenas num mundo mítico.
Mas Deus sabia de tudo que ia acontecer. Aí foi mostrou os arvoredos
tudo. “- Agora desse arvoredo aí, que vocês não podem comer, viu?” E a
serpente tava perto, escutando. “- Não pode, porque se vocês comer desse
arvoredo é pecado mortal, não pode de jeito nenhum!” A tentação ficou
lá. Não apareceu a Adão. A mulher sempre tem a cabeça, o juízo, mais
leve, leve, assim iludida né (riso). Aí a tentação tava toda graciosa lá
no pé do arvoredo, né?! Aí a mulher assim: “- Ô fruta bonita, meu
Deus!” Aí ela foi e comeu. Aí disse: “- Ó, Adão, vem cá. Vem comer um
pouco pra você ver.” Aí Adão chegou e falou:” “- Devera, mas é bão de
mais, tá doido! (riso).
E quando Deus mandou o Anjo ver como Adão estava, a visão foi inesperada
e ele detalhou para Deus a situação em que encontrou o primeiro homem:
“- Ó Senhor, ele desobedeceu ao senhor porque ele tá vestido de
fôia. Tá vestido. E se apadrinharam, tudo envergonhado com vista no
chão.” E foi ele pessoalmente chamar a atenção “- Ó, Adão, que que
aconteceu com você mais com sua mulher? Foi você que inventou de atrair
ela pra comer daquela fruta?” “- Foi ela. Foi ela que me iludiu e eu
comi. Fiquei nesse estado.” “- Pois é, se vocês agora vocês tão
vestidos, vocês se viram. Eu vou dar uma semente pra você plantar,
dagora por diante você vai comer do suor do teu rosto. Porque você
perdeu a veste da graça de Deus. Então agora você vai se vestir e comer
do suor do teu rosto. Ademais, eu vou mandar o Anjo trazer tá?! Pra você
plantar.” Aí foi, mandou o Anjo. O Anjo chegou com a enxada e a
semente. Diz: “- Óia Adão, aqui é a semente do algodão, que a profissão
de Eva é tecer roupa. Porque vocês, a geração de vocês vai se estender.
Aí você pega a enxada e vai trabaiá. Aí ele foi, aí o Anjo foi embora.
A história bíblica toma um caráter extremamente nordestino, campesino:
aqui a divisão do trabalho é claramente definida, embora sem hierarquia.
O homem é o lavrador e a mulher a tecelã, enquanto ele lida com a
terra, ela com o trabalho da criação das vestimentas. Entretanto, o
grande ponto de mudança proposta pela história de dona Zefa ocorre neste
momento:
Quando bateu a enxada no chão aí brotou sangue da… do corte da
enxada na terra, a terra foi e gemeu. Aí ele disse assim: “- Você é
igual meu corpo, pois eu não vou cortar mais não, cê gemeu. Ah não, ah
não. Não vou desobedecer, cortar ninguém não.” Aí foi pra casa, foi
comer fruta. No outro dia, aí Deus mandou o Anjo: “- Vai ver se Adão
plantou mesmo.” Chegou lá: “- Adão, por que você não plantou?” Aí ele
contou o caso. Aí o Anjo voltou. Já foi ao Senhor: “- Ele não plantou
nada não. Que a primeira enxadada que ele deu, a terra gemeu e brotou
sangue. E ele disse que se era igual o corpo de que ele não ia plantar
não.” Aí o Senhor falou: “- Eu tenho que ir lá.” Chegou assim: “- Ó
Adão. Como é que aconteceu que diz que você cortou a terra e ela
gemeu?’E disse assim:“- Ó Adão, é porque ela é virgi, porque o homem
nunca cortou, porque o homem nunca trabalhou na terra. Eu vou conversar
co ela pra fazer sua plantação.” Aí foi ele e disse assim ó: “- Mãe
Terra você deixa Adão cultivar você, cortar você, porque você mesmo dá,
você mesmo come.”Você vê que tudo que a terra produz ela mesmo come, né.
E aí falô: “- Corta terra agora.”Aí ela não gemeu mais e Adão foi e
plantou.
A terra desempenha um papel crucial na história, pois o próprio Deus vai
pedir licença à Grande Mãe para que seu filho possa trabalhar nela. A
explicação sobre o sangue e a virgindade da terra a torna humana. Mesmo
sendo a Grande Mãe, ela permaneceu virgem até o homem perder a sua
“vergonha”. A terra não fala, mas geme, ela parece ter sofrido ao
primeiro corte dado, pois Adão a ouve e recua. Poderíamos levantar
questões sobre uma religiosidade pré-cristã, relacionar aos mitos
romanos e gregos, a Deméter e a Gaia, mas certamente estas culturas não
parecem estar presentes nas palavras de Zefa. Ao que tudo indica devemos
considerar muito mais o manancial indígena das culturas fortemente
presentes na região de onde ela veio, inúmeros grupos, dentre os quais
poderíamos destacar os Kariri-Xocós, os Pankarus, os Funiôs, os Pataxós,
cujas culturas estabelecem uma forte relação com a Mãe Terra. E embora a
presença Guarani nesta região não seja significante, sua mitologia é de
forte impacto no imaginário da população brasileira, assim vemos muita
semelhança com este momento engendrado na mitologia bíblica pela
contadora. Na mitologia de origem Guarani, a Mãe Terra nasce do sopro do
cachimbo do Grande Deus, que mandou os sete anciãos com as
sementes-desenhos de tudo que seria criado com a missão também de criar o
ser humano como o guardião da roça.
Na história narrada por Zefa, a terra ao se permitir ser germinada, após
ter oferecido o seu próprio barro, a matéria prima para criação do
primeiro corpo humano, ela então permite que em seu ventre sejam geradas
as sementes plantadas por mão humana que vão servir de alimentos e
algodão para criar abrigos. E desta forma, permitir ao homem que possa
executar o seu castigo principal, o trabalho, pois a sua prole é uma
consequência inexorável de sua existência comum com o sexo oposto.
“- Ói, só tem uma coisa. A sua desobediência foi demais. Seu
trabalho é plantar algodão. Agora vai vim filho de toda parte. Vai
encher a casa deles. Faz uma casa grande porque home não pode morar no
tempo. E o trabalho de Eva é só fiar pra vestir os filhos porque vem
filho demais por aí.” Aí foi de geração em geração e foi gente toda
vida, e gente toda vida, e Adão trabaiando e trabaiando junto com os
filhos mais véio.
A história poderia terminar aqui, como geralmente acontece, “e a partir
daí as gerações foram se sucedendo…” Mas Zefa introduz um elemento
inesperado, a incapacidade do homem de vestir a sua prole. Quanto mais o
casal trabalhava, mais filhos tinha e mais gente nascia para ser
vestida. E Deus mandou o Anjo, mais uma vez, para verificar como estava
indo a coisa. Mas aí, novamente, a narradora expõe Adão como um
orgulhoso a querer enganar ao seu pai.
“- Cês se esconde pro Anjo não ver.” Mas os menino queria ver né. Aí
ele disse assim: “- Amanhã o Senhor vem te visitar e conhecer seus
filho.” Aí ele foi mais Eva e disse assim:“- Vocês fiquem bem ó, vocês
se esconde viu?! Porque o Senhor não pode ver vocês despidos não. Só
aparece os vestidos.” O Senhor sabia de tudo né. Aí quando o Senhor
chegou, chegou a multidão de filhos tudo vestido. E arvoredo tava por
todo lado, os outros ficaram por lá apadrinhado, escondido, à frente dos
arvoredo e apontando as cara, como macaco ainda por cima. O Senhor tava
conversando com ele e disse assim: “- Que mói de gente é esse aí?”
Quando Adão, não pôde falar nada, abaixou a cabeça assim.” “- Adão cê
mentiu pra mim né? Né Adão?! Que tanta gente pelado é esse me espiando
atrás dos pau? Nem é filho seu não Adão?” “- Não, num é meus fio não.
Deve ser de algum bichinho por aí.”
Percebemos já no primeiro homem, os graves defeitos da raça humana,
querer enganar ao próximo, e no caso o próximo era Deus. Mas, ao
contrário da imagem do Deus colérico judaico-cristão, temos nesse de
Zefa um Deus com um grande senso de humor. Pois diante da multidão de
cabeças saindo de trás das árvores, e ao perceber que Adão estava
trapaceando ele completa:
“- Pois é, esses que tão me espiando é seus fio né. Mas você
escondeu de mim, então, em macaco eles se transformará.” Aí ficou a
geração braba de macaco no mundo todo. Mas é tudo família de Adão. Tudo
que é completo no homem é completo no macaco.
A história aponta para as semelhanças entre o homem e o macaco e sua
origem comum, explicando de forma mítica o elo perdido entre as duas
espécies. É crucial percebermos na narrativa desta história a luta entre
o mundo perfeito, sem pecado, proposto por Deus, (mesmo sabendo do seu
insucesso na empreitada da criação, de acordo com a autora) e a vida
humana enquanto conflito permanente. Ou poderíamos avançar e tomar a
definição de Fitzgerald, empregada por Deleuze na abertura do seu
capítulo Porcelana e Vulcão: “Toda vida é, obviamente, um processo de
demolição.” Comentando o autor, Deleuze acrescenta:
Eis um homem e uma mulher, eis casais (por que casais, a não ser
porque já se trata de um movimento, de um processo definido como díada?)
que têm tudo para serem felizes, como se diz, belos, encantadores,
ricos, superficiais e cheios de talento. E depois alguma coisa se passa,
fazendo com que eles quebrem exatamente como um prato ou um copo.
(DELEUZE, 2006:157).
É claro, que na ótica de Zefa, o sentido da demolição ou da fissura,
como aponta Deleuze passa por um filtro extremamente bem humorado. Ela,
como mística e perfeitamente harmonizada com as forças da natureza está
muito mais próxima da perfeição do criador do que do mundo da geração
braba de macacos consumidores. Ela, portanto, vê o casal primeiro, que
mal pode saborear as delícias do paraíso, para ter que dar duro para
sustentar uma prole, cada vez mais necessitada, como algo que
cotidianamente escolhemos na nossa vida distraída e descomprometida com
as necessidades da Mãe Terra. E conclui com certa ironia a sua história
da Criação do Mundo: “As história antiga são essas, é piada, né?! Uma
coisa muito bonita pra se contar. Bom, eu gosto do antigo, a história
antiga faz sentido né?!” O sentido que faz é sua possibilidade de
associação e contextualização, a sua performance.
Zefa conta as suas histórias sentada no mesmo banquinho, junto ao chão
em que trabalha fazendo suas esculturas em madeira. Seus gestos são
econômicos, sua voz mansa, não dramatiza e não dá pronto os estados dos
seus personagens. Sua palavra então, como uma lâmina de cristal, oferece
transparência total e o verbo se faz carne não pelo que representa, mas
pelo que criamos enquanto ela desfila seus incontáveis casos antigos.
Acompanhamos sutilmente a sucessão de fatos, nos quais suas lembranças
mais remotas se desenovelam em fios de lembranças recuperadas,
sentimentos recuperados, não em função de um princípio religioso, mas
pelo prazer fundamental de fazer do verbo carne. E por momentos fugazes
experimentamos as delícias do paraíso perdido, transformados e
transportados pelas palavras-imagens de Zefa.
Fotos de Lucas Vandebeuque