Em Marx, o conceito de sociedade civil inscreve-se na crítica a Hegel e aos seus neo-seguidores, com o objetivo de elaborar os fundamentos da sua própria concepção da realidade social. Nem por isso deixa de reconhecer como correto, de modo geral, o conceito desse filósofo alemão sobre sociedade civil. No Prefácio para a Crítica da Economia Política de 1857, Marx expressa ao mesmo tempo essa concordância e a crítica fundamental ao idealismo ao afirmar que, como para Hegel e os ingleses e os franceses do século XVIII as condições materiais de existência recebem o nome de sociedade civil, mas que, ao contrário dos idealistas, elas são o solo matrizador do todo social.
E escreve:
“A minha investigação desembocou no resultado de que as relações jurídicas, tal como as formas de Estado, não podem ser compreendidas a partir de si mesmas nem a partir do chamado desenvolvimento geral do espírito humano, mas enraízam-se, isso sim, nas relações materiais da vida, cuja totalidade, Hegel, na esteira dos ingleses e franceses do século XVIII, resume sob o nome de ‘sociedade civil‘, e de que a anatomia da sociedade civil se teria de procurar, porém, na economia política…1.”
Marx e Engels, Lenin e outros invertem o conceito de sociedade civil em Hegel. Para eles, a sociedade civil é o conjunto das relações econômicas (em última instância) constitutivas da base material. Na Ideologia alemã, Marx e Engels afirmam:
“A forma de intercâmbio, condicionada em todos os estádios históricos até os nossos dias pelas forças de produção existentes, e que por seu turno as condiciona, é a sociedade civil, a qual como se torna claro pelo que já foi dito, tem por premissa e base a família simples e a família composta, o chamado sistema tribal, cujas características marcantes mais precisas se encontram contidas em páginas precedentes. Já por aqui se revela que esta sociedade civil é o verdadeiro lar e teatro de toda a história, e que é absurda a concepção da história até hoje defendida que despreza as relações reais ao confinar-se às ações altissonantes de chefes e de Estados”2.
E quase repetindo:
“A sociedade civil compreende todo o intercâmbio material dos indivíduos numa determinada etapa do desenvolvimento das forças produtivas. Compreende toda a vida comercial e industrial de uma etapa, e nesta medida transcende o Estado e a nação, embora, por outro lado, tenha de se fazer valer em relação ao exterior como nacionalidade e de se articular como Estado em relação ao interior. O termo sociedade civil surgiu no século XVIII quando as relações de propriedade já se tinham desembaraçado da comunidade antiga e medieval. A sociedade civil como tal só se desenvolve com a burguesia…”3.
E sustenta:
“…havia a partir daí generalizado que, em geral, não é o Estado que condiciona e rege a sociedade civil( bürgerliche Gesellchaft), mas é a sociedade civil que (condiciona e rege) o Estado, que, por conseguinte, há que explicar a política e a sua história a partir das relações econômicas e do seu desenvolvimento, e não inversamente”4.
Marx fixa aqui um pressuposto fundamental. As condições materiais de existência constituem a matriz ontológica do todo social. O jurídico, o político, o ideológico são momentos – cada qual com um traço próprio, dialeticamente configurados -, mas nunca postos na condição fundante das relações materiais de existência.
Para o que nos interessa aqui, que é sociedade civil/sociedade política, isto significa que o princípio de sua inteligibilidade não se encontra no interior dela mesma, mas fora dela, o que, em absoluto, não lhe suprime a especificidade nem a importância e nem a reduz a mero efeito da economia, mas proíbe pensá-la, porque efetivamente não o é, como uma esfera autônoma, cujos relacionamentos com outras esferas seriam externos e fortuitos. Assim, nem o Estado, nem a política, nem o poder seriam inteligíveis sem as relações materiais das quais são a expressão e contribuem para cuja reprodução.
Estabelecido isto, é preciso dizer ainda que Marx toma como objeto de suas análises a sociedade civil na sua forma moderna, ou seja, como sociedade burguesa. Qual é, pois, a natureza da sociedade civil moderna? Fundada na propriedade privada regida pelo capital, ela é atravessada por conflitos radicais entre capital e trabalho, pela concorrência, pelos interesses privados, pela anarquia e pelo individualismo.
O surgimento e a natureza do Estado decorrem dessa mesma natureza da sociedade civil. Dilacerada pela contradição entre interesses gerais e particulares e não podendo resolvê-los ela própria, dá origem a uma esfera, com um aparato, com tarefas, com uma especificidade própria, mas cuja função fundamental seria a de solucionar essa contradição. Sua origem, porém, delimita-lhe precisamente os limites. Deste modo, solucionar a contradição não significa superá-la, porque isso está para além de suas possibilidades, mas antes administrá-la, suprimindo-a formalmente, mas conservando-a realmente, e deste modo contribuindo para reproduzi-la em benefício das classes mais poderosas da sociedade civil.
Contrariamente ao que pensava Hegel, o Estado não torna os indivíduos livres, mas apenas cria a ilusão da liberdade.
Por isso mesmo, a crítica de Marx a Bauer, na Questão Judaica, vai no sentido de mostrar que a emancipação política que consiste no desenvolvimento mais pleno da esfera política, no pleno exercício dos direitos dos cidadãos de todos os indivíduos não é, de modo algum, a etapa final da libertação do homem, ainda que a emancipação política represente um grande progresso 5. Isto por que ela não elimina, mas deixa intactos os ordenamentos da atual sociedade.
Vamos insistir um pouco nestas contraposições Marx/Hegel para entendermos a referida inversão do conceito de sociedade civil.
Ao redigir A Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Marx contrapõe as teses daquele filósofo que coloca o Estado como aquela formação que dá unidade à sociedade civil. Marx inverte isto: é a sociedade civil que gera o Estado; não é o Estado que gera a sociedade civil. Hegel levava a reflexão no sentido de mostrar que a questão se resolvia, tornando o Estado perfeito. Como é que se torna o Estado perfeito para Hegel? Tornando-o racional. O Estado que seja uma encarnação da razão mais alta possível, de uma razão que tornou-se consciência de si própria, da razão absoluta. Qual será a crítica de Marx? O Estado racional é impossível, ou seja, Estado e razão efetiva são incompatíveis. Não constituem uma identidade, mas sim uma desidentidade.
Todos os sistemas de Filosofia Política, desde Platão até Hegel, são um esforço de reflexão no sentido de perfectibilidade do Estado, do poder. Não ocorre a nenhum desses grandes pensadores, a não ser como prenúncios pouco importantes6, como indicativos, como utopia, a eliminação da dominação. Contrapondo o existente ao representado, à razão política, Marx é original. Em vez de pensar a perfeição do Estado, ele declara sucessivamente a impossibilidade do Estado racional e a impossibilidade do homem livre com a presença do Estado. A filosofia política dele é, por consequência, não o Estado em si, mas a eliminação de toda e qualquer forma de dominação, inclusive, a política. Inverte a filosofia política radicalmente. Ele funda uma reflexão em que a tese central é o rompimento com a filosofia política, de Platão a Hegel, que é a perfectibilização do poder. Em Marx, é a concepção da dissolução de toda forma de poder, inclusive, o político, e de outras manifestações culturais, por meio da transformação social que se torna o grande objetivo.
Ainda n‘A Questão Judaica, Marx contrapõe a emancipação política à emancipação humana, mostrando que a emancipação política é algo restrito, limitado e que o objetivo fundamental, sem desprezo pela emancipação política, não é a emancipação política, puro instrumento da máquina estatal. A emancipação humana, vale dizer, a auto-edificação na infinitude da processualidade histórica do ser social, esta é a que importa. A partir da polêmica com Bruno Bauer, ele universaliza a questão: a emancipação humana é a universalização da emancipação, são todas as emancipações.
Notas:
1. MARX, K. e ENGELS. Obras Escolhidas, tradução de Álvaro Pina. Lisboa: Edições Avante, 1982. vol. I, 530p. Grifos meus.
2. Ibidem, 128 p. Grifos do original.
3. Ibidem, 71 p.
4. Ibidem, vol. III, 199 p.
5. MARX, K. A Questão Judaica. São Paulo: Editora Moraes, s/d. 28 p. Ler ainda nesta obra algumas referências sobre a temática da emancipação humana x emancipação política, 37 p., 72-73 p., 88 p.
6. Por exemplo, parece que n‘As Leis, Platão chega a seguinte fórmula: o Estado perfeito é impossível, porque a distribuição de riqueza é desigual; e a distribuição igual da riqueza é impossível.
2. Ibidem, 128 p. Grifos do original.
3. Ibidem, 71 p.
4. Ibidem, vol. III, 199 p.
5. MARX, K. A Questão Judaica. São Paulo: Editora Moraes, s/d. 28 p. Ler ainda nesta obra algumas referências sobre a temática da emancipação humana x emancipação política, 37 p., 72-73 p., 88 p.
6. Por exemplo, parece que n‘As Leis, Platão chega a seguinte fórmula: o Estado perfeito é impossível, porque a distribuição de riqueza é desigual; e a distribuição igual da riqueza é impossível.
Referências Bibliográficas:
BOBBIO, N. O Conceito de Sociedade Civil, Rio: Graal, s/d
BOBBIO, N. Estado, governo, sociedade – para uma teoria geral da política. 2a edição. Rio: Paz e Terra, 1987, 39-52 p
BOBBIO, N. Dicionário de Política, 2a edição. Brasília: UnB, 1986.
CHASIN, J. Democracia Política e Emancipação Humana in Ensaio, no 13, São Paulo: Ensaio, 1984.
LUKÁCS, G. Ontologia do Ser Social – a falsa e a verdadeira ontologia de Hegel. São Paulo: Livraria de Ciências Humanas, 1979.
MARCUSE, H. Razão e Revolução, tradução de Marília Barroso. 2ª edição, Rio: Paz e Terra, 1978
MARX, K. e ENGELS. Obras Escolhidas, tradução de Álvaro Pina. Lisboa: Edições Avante, 1982. vol. I, 530 p.
MARX, K. A Questão Judaica. São Paulo: Editora Moraes, s/d. 28 p.
MARX, K. A Ideologia alemã, 4a edição. São Paulo: HUCITEC, 1984
BOBBIO, N. Estado, governo, sociedade – para uma teoria geral da política. 2a edição. Rio: Paz e Terra, 1987, 39-52 p
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MARX, K. A Ideologia alemã, 4a edição. São Paulo: HUCITEC, 1984
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